Versão original ⏩ A mosca que atrasava o tempo⏪ lida no desafio "Cara a tapa", do Carreira Literária.
“O ponteiro maior já tinha dado duas voltas completas no círculo do tempo estampado na parede. Ele ainda não havia voltado. Saiu para comprar cigarros antes de dormir. Eu, que já tinha me deitado, me levantei, peguei o meu tabaco, que ficava escondido na lata de café, que ele não tomava, e fiquei apreciando as formas que a fumaça fazia contra a luz baixa do microondas.
Como se apreciasse nuvens no céu, vi um cachorro, ou talvez fosse um unicórnio. Encontrei até uma faca no desenrolar da bruma. O meu céu não era límpido, muito menos azul, era escuro e aprisionava em vez de libertar.
A mesma luz baixa que iluminava minha imaginação contra o ar fétido do cigarro era a claridade que me permitia ver as horas no relógio de ponteiro.
Estava ali, de frente para as horas, num tique-taque não frenético, mas monótono como muitas vidas, como a minha. Encarei a forma redonda com números como se fosse o objeto mais precioso da casa. Mas não era. O artigo de mais valor na vida era o tempo. O meu tempo. Já perdi muito valor investindo nessa espera.
Ninguém nasceu para esperar. Nem a mosca que pousava de vez em quando no ponteiro dos segundos e atrasava o tempo. Será que faria diferença para o inseto se o tempo parasse? Talvez não. Soprei a fumaça do meu cigarro contra o asqueroso bicho que zunia a ponto de me deixar irritada. A mosca verde, que movimentava mais as patas que meu marido se mexia na cama, me aborrecia mais que a demora dele em voltar. Atrasada estava eu no tempo, em permanecer ali, estagnada na noite e na vida.
Se o tempo voltasse, será que diria para ele não ir? Ofereceria o filete do meu vício que mantinha escondido para momentos de angústia como esse? Daí haveria cigarro, ele não teria saído e não existiria angústia, tampouco repulsa pelo inseto.
A varejeira deu mais uma volta no relógio. Ela só circundava lixo e podridão. O que estava fazendo ali?
Ele era a mosca que atrasava os ponteiros da minha vida. Se o tempo voltasse, a mosca morta não estaria com a chinelada que eu dei contra a parede”.
(Marina Hadlich)
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