(O conto inspirado no jazz)
"Todos os dias eu ouvia barulhos estranhos no apartamento ao lado. O vizinho — presumo eu que fosse um homem não sei porque — escutava Billie Holiday enquanto martelava.
Engraçado nunca termos nos encontrado nos corredores. Perguntei ao zelador, disse nunca ter visto o morador. Conclui que fosse um homem sozinho, pois nunca o ouvia conversando com ninguém.
Não reclamei ao síndico sobre os barulhos por medo. As marteladas não eram na minha parede. Então onde seriam? Ou esse homem tinha uma casa cheia de quadros ou ele martelava outra coisa. Seria um caixão? Para alguém que com ele conviveu?
Por isso, toda vez que as marteladas começavam eu focava na música e saía a rodar pela sala. Eu me apaixonei pelo jazz e pelo meu vizinho, sem ao menos o conhecer.
Eram quinze minutos de dança por dia, sempre no mesmo horário. Ele poderia ser um assassino, mas tinha bom gosto para música. Eu precisava descobrir o que ele estava construindo, destruindo, ou escondendo.
Quando o ouvi saindo furei nossa parede. Não me importava se o furo aparecesse do outro lado. Poderia alegar que estava pendurando um quadro. Espiei do outro lado. Pelo ângulo não consegui ver nada de diferente. E não, a parede do outro lado não tinha um único quadro.
Barulho na fechadura. Ele voltava para casa. Ou ela. Fechei o olho como se ele não pudesse me ver pelo furo. Não resisti, abri e continuei espiando. Felizmente ele se posicionou bem no meu campo de visão, se reclinou mexendo no computador e, de repente, Billie Holiday explodiu pelo apartamento e o barulho começou.
Mas ele não estava martelando. Estava dançando. De forma desengonçada. Ali estava a resposta: sapatos de sapateado. No entanto, a falta de jeito do dançarino, sim era um homem — bonito até —, fazia com que o som saísse todo distorcido e sem ritmo, diferentemente da voz da Billie. Com certeza aulas online não eram o melhor jeito de ele aprender.
Coloquei um quadro sobre o furo e corri bater na porta dele. Depois de tantos dias eu já era experiente na dança, poderia ensiná-lo".
Marina Hadlich
Publicado no instagram em 19/6/2020
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