Pego meu cigarro, apago a luz e me aproximo da janela que está coberta por um véu transparente, parecido com o véu do meu casamento que não aconteceu. Acendo o cigarro ainda por trás da penumbra e assim que me sinto segura com a fumaça me contaminando, afasto a cortina.
A escuridão é meu escudo, meus olhos os binóculos para esmiuçar a vida alheia. Meu diário é repleto de relatos, não meus, deles. Se um dia eu for encontrada morta, não vão encontrar aqui as razões da minha ida, mas encontrarão as deles.
Se eu jogasse um avião de papel pela janela, certamente o objeto cairia num dos apartamentos do prédio que encaro.
O alvo sempre foi o alazão do segundo andar, janela à direita. O cabelo já não cobre o fronte, mas as laterais são bem cheias. Minha mãe diria que a beleza dele era nula, igual ao cabelo do topo, eu digo que é exótica.
Ele dorme por meia hora assistindo ao jornal quando chega do trabalho. Apenas tira a gravata e senta sua barriga avantajada no sofá. Assusta-se com o barulho do canário da vizinha do andar acima, que fica à minha esquerda. É o sinal do acasalamento.
Como todas as noites, ele vai até o quarto, tira as meias pretas sociais broxantes, desce a calça mal ajustada, veste uma jeans, combinando com uma camiseta escura que esconda a saliência embaixo das tetas caídas e completa com chinelos. Ele vai ao encontro da dona do canário, não sem antes tirar a aliança do dedo anelar.
Nunca vi mulher no apartamento. Quiçá seja viúvo. Imagino como foi a morte de alguém que deixa tanta saudade, deve ter sido trágica para não conseguir se livrar do símbolo da união. Talvez a esposa tenha se jogado dessa mesma janela que observo, não, claro que não, senão eu teria visto. Quem sabe ela tenha sido atropelada. Um câncer é mais plausível. Seria meu alazão um assassino? Não parece ser desse tipo. Talvez ele simplesmente seja divorciado e não consegue se livrar do sentimento pela ex.
Ele poderia atravessar a rua e vir até a minha porta, mas prefere uma mulher de trinta e tantos anos em vez de mim no auge dos cinquenta. Ele não deve ter reparado que meus ossos da clavícula aparecem mais que os dela. O cabelo dela é pintado enquanto o meu natural traz a beleza da experiência.
Dou um novo trago no meu cigarro para acalmar a ânsia de gritar pela janela. Todas as noites ensaio um berro, uma frase, que o impeça de seguir o mesmo trajeto, que o faça virar como um robô na minha direção.
Ele ainda está dentro do próprio apartamento. Sua expressão de angústia demonstra a dificuldade de tirar a aliança nessa noite. O dedo estava seguindo o movimento da barriga, crescendo. Era previsível que isso iria acontecer. Mas esse homem, como muitos outros, não enxerga o que é previsível.
Antes que meu cigarro acabe eu posso garantir a ele, como se visse numa bola de cristal, que esse romance não duraria.
Com o rosto rubro de raiva, esforço ou pânico, ele enfia a mão esquerda no bolso da calça e com a direita encosta a porta. Eu poderia me aproveitar desse momento e aguardá-lo na cama dele, apenas com meu cigarro, como uma amante sensual faria.
Mas minha coragem já pulou pela janela há muito, por isso sigo observando o meu alazão adentrando no apartamento dela, sob uma luz baixa, de clima romântico. Ela o abraça no pescoço, passa a mão nos cabelos que parecem terem sido cortados com uma roçadeira apenas no meio da cabeça e começa a levantar a camisa dele, mas o homem se nega a tirar a mão do bolso e a camiseta permanece no lugar. A mulher não precisa de duas pistas para notar algo errado. Obriga-o a mostrar a mão e, quando vê a aliança, enxota-o porta afora. Vi os berros projetados da boca dela. A cortina nunca era fechada. Parecia que tínhamos uma vizinha exibicionista, apesar de que a performance dos dois não era digna nem de Oscar nem de Framboesa de Ouro.
O homem sai, sobe até seu apartamento, senta-se no sofá com o notebook. Poucos minutos depois fecha o aparelho, apaga a luz da sala e sai do apartamento.
Acabou o encanto da noite, talvez não houvesse mais nenhum dia de espetáculo para eu observar meu alazão na corrida – digo isso porque o ato sempre é breve, nunca uma caminhada.
Com meu cigarro já tinha derretido na mão, fecho a cortina e me dirijo para o banho. Enquanto ligo o chuveiro, escuto a campainha. Saio enrolada no meu roupão digno de uma senhora de cinquenta anos e antes mesmo de espiar pelo olho mágico abro a porta para dar de cara com o cavalo no qual apostei na corrida.
— A senhora é ourives, certo? Consegue tirar essa aliança do meu dedo?
Só tiraria se fosse para colocar outra com o meu nome.
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